segunda-feira, 30 de julho de 2012

O fascinante caso dos chocólatras da Bela Vista

A Zé Rubem Fonseca e Zé Saramago.



Abre a porta de casa e espanta-se com o ambiente em penumbra. No ar, um aroma perfumado, adocicado, estranho ao olfato. Percebe, ao pisar o assoalho, que todo o chão da sala e do corredor está coberto por pétalas de rosas. Caminha lentamente, desconfiado de que estejam lhe pregando uma peça. Na mesa, velas acesas, taças e uma garrafa de vinho. Um bilhete, a letra da mulher: “Tire a gravata, tire a camisa, tire as calças, venha para o quarto”. Ele para, reflete por um instante: há quanto tempo o relacionamento esfriou? Fazia meses que não transava com a esposa, talvez um ano... ou mais? Nada daquilo fazia o menor sentido. Mas que saída ele tinha a não ser pagar para ver? Ainda cogitou andar de lado, feito um caranguejo, sair de casa e entrar de novo, para ver se tudo aquilo desaparecia como mágica, e as coisas voltavam à normalidade. Mas não. Pensou melhor: e se fosse verdade? Lembrou-se dos primeiros anos de casado. A mulher era jeitosa, a vida sexual era ótima, existia carinho, compreensão, conversas agradáveis. Não havia o histrionismo dela, a implicância com pequenas coisas - como uma toalha molhada em cima de cama, os ciúmes irrefreáveis. Chegou ao quarto e encarou a cena não sem surpresa: estava ali sua esposa, com quem se casara quatro anos antes. Com o corpo nu, coberto de chocolate. “Ela enlouqueceu”, pensou. O interessante é que não sentiu o menor tesão. Só gula. Adorava chocolate, e a mulher ali, coberta de calda de chocolate, com chocolate até o pescoço, escorrendo pelos seios, braços, ventre, coxas, panturrilhas, indo cobrir-lhe os dedos dos pés, inundando o lençol. Ele achou que deveria ter nojo, mas sentiu fome. Aproximou-se da mulher e lhe lambeu o rosto, única parte onde não havia chocolate. Achou indigno ir direto ao que interessa, chocar a mulher com a falta de apetite sexual em detrimento ao excesso de voracidade gustativa. Só então começou a se fartar de chocolate, lambendo euforicamente o pescoço, o peito e indo até a barriga, onde parou no umbigo. Ali se deteve por mais tempo, aproveitando a pasta acumulada na cavidade, e então teve um clique! Havia, sim, uma reentrância onde o chocolate haveria de se acumular mais abundantemente. Desceu a boca até lá, e lambeu, lambeu e lambeu mais, até sumir o gosto doce e sentir o salgado da pele novamente. Virou a mulher de bruços e, com um movimento frenético de língua, bebeu também o chocolate que tinha ido para o cu. Aos poucos, lambida toda como uma gata, a mulher foi recuperando a brancura da pele, mas o marido não se saciava, procurava ainda mais doce para sugar, lambia a axila, a dobra da perna, a nuca, e comia chocolate misturado com cabelo, com pelo pubiano, com suor, com muco. A mulher, até então impassível, sem um gemido, riso ou suspiro, esperou que ele terminasse e caísse exaurido ao seu lado na cama, rolando no lençol achocolatado, empapuçado e feliz. Então ergueu-se, caminhou lentamente até o banheiro, deixando um rastro marrom pastoso pelo caminho, lavou as mãos e o rosto que estavam grudentos. Quando voltou, tinha um objeto pontudo e brilhante nas mãos. Antes de enfiar a faca no peito do adormecido marido, ainda fez a observação aborrecida:

- Bolas, eu pedi pra você tirar a roupa! Sangue, merda, urina, chocolate, mais tarde vou ter que queimar essa porra toda... Paciência.

Depois de retalhar o corpo, com uma machadinha, separou a cabeça para colocar num saco. O rosto do marido estava inteiramente marrom, como a cabeça de um escravo etíope. Teve um ímpeto, retrocedeu enojada. Mas acabou não resistindo: num solavanco, como se aquele desejo fosse mais forte do que ela, deu uma demorada e sôfrega lambida na cara achocolatada do marido decapitado.  

                                                                                                                      Por Rafael Gimenez.