sábado, 25 de dezembro de 2010

O casulo

Chamava-se Butterfly. Quem lhe deu o pitoresco nome foi o pai, um excêntrico engenheiro, projetista de aeronaves, que sumiu no mundo quando ela contava cinco anos de idade. Um ano depois, a mãe suicidou-se. Foi criada pelos tios desde então. Tornou-se uma jovem esquiva, pouco comunicativa, que ficava boa parte do tempo trancada em seu quarto lendo, ouvindo música e divagando em elucubrações. No dia em que completou dezesseis anos, formou-se um conselho de família. Tio Heitor, grave como o tuberculoso histórico que era, decretou: “Deve se casar. Casando, se endireita!”


Ela, miúda, magrinha, rosto muito pálido, jamais dera pelota ao sexo oposto. É bem verdade que foi mantida reclusa durante toda a infância, estudando em internatos de meninas e criada sob os olhares de mordomos, babás, motoristas. Mas agora, diante dos partidos que se apresentavam, demonstrava a mais patética e aterradora indiferença. Com um rapaz loiro, de rosto corado, filho de um industrial, chegou a ser taxativa: “Agradeço seu interesse, mas as coisas que você me diz definitivamente não me importam”.


Tal comportamento, que parecia resoluto e definitivo, desesperou a família. Tia Cassilda, a mais progressista daquela família conservadora, propôs o que lhe parecia uma solução, após fazer suas constatações: “Prendemos demais a menina. Acho que chegou a hora de deixá-la caminhar com as próprias pernas”. Na falta de saída melhor, resolveram “entregar nas mãos de Deus”. Organizou-se uma agenda social para Butterfly. Passou a freqüentar festas, inicialmente na companhia das primas. Cortejada pelos rapazes, continuava a esnobá-los, porém agora com encenada simpatia e divertida curiosidade. Permitia sua aproximação, dançava com eles, para depois desprezá-los, aturdi-los e humilhá-los com um requintado ar de desinteresse.


O tempo foi passando, a família já aceitava a idéia de mandá-la a um convento. Um dia, saiu para passear com as primas, caminhavam pela orla da praia. Viram, caído na calçada, um mendigo. Seu rosto adquirira um tom esverdeado, os cabelos eram cinzentos e imundos, os trapos esfarrapados que cobriam seu corpo pareciam estar se desfazendo. As primas, com asco, apertaram o passo, mas ela se deixou ficar, fascinada, olhando aquele pobre homem. Foi preciso que a puxassem e ela, já longe, ainda virava o pescoço para trás, olhando aquela criatura como se fosse um anjo que a chamasse. Nos dias seguintes, se apresentou mais silenciosa do que já era. As tias julgaram que perdera de vez o juízo. Num sábado, quebrou o silêncio: “Quero exercer minha verdadeira vocação. Quero ajudar as pessoas”. Não se opuseram. Comprou-se um grande carro, alugou-se uma casa. Escolheram o nome, que mandaram gravar numa placa: “Lar de Desvalidos ‘São Judas Tadeu’. Ia pessoalmente ver os internos, pessoas sem família que recolhiam das ruas, onde antes viviam doentes, esfarrapadas, fodidas.


Mudou. Tornou-se, desde então, radiante. Os tios se chocaram quando, durante um jantar, contou uma anedota. Era uma coisa inimaginável, logo ela, que nunca sorria, que não achava graça em nada. Achavam, positivamente, que ela tivera sua epifania na caridade. Deixaram de importuná-la com preocupações de casamento. Todas as tardes ela passava no abrigo e, um dia, chegou à casa acompanhada por um rapaz, muito alto e distinto. Os tios a tudo assistiram pela janela. Perguntaram quem era e ela respondeu: “Um amigo. Tem me ajudado no abrigo”. Não fizeram mais perguntas. Todos os dias, porém, o amigo a trazia em casa e, um dia, foi convidado a entrar e jantar com a família. Acharam-no formidável, educadíssimo. E nitidamente apaixonado por Butterfly. Contrariando todas as expectativas, quando lhe sugeriram que ele daria um bom marido, Butterfly acedeu. E noivaram. Um ano depois, se casaram com todas as pompas esperadas. Não partiram para a lua-de-mel: Butterfly não queria se afastar do abrigo. Achando que ela progredira demais, que era outra mulher, preferiram não discutir. O próprio marido, um anjo de candura, concordou. Faria-lhe todas as vontades.


Foram da igreja para casa, e ela causou-lhe a primeira frustração: alegando muito cansaço, deitou-se na cama e dormiu. Apaixonado e paciente, ele não insistiu. Teriam a vida toda. No dia seguinte, a mesma coisa: “Trabalhei o dia todo, atendemos um leproso no abrigo. Não tenho cabeça para isso”. Na terceira noite, ele se doeu. Alguma coisa não lhe cheirava bem. Deitou-se junto a ela, tocou-lhe o seio. Ela deu um berro aterrador, que lhe paralisou:


“Não me toque! Eu te proíbo! Você não me tocará nunca, está ouvindo? Nunca!”


Ele entrou em desespero. Não sabia o que fazer. No dia seguinte, trancou-se à chave com Tio Heitor, Tia Cacilda, Tia Amélia. Relatou-lhes o que acontecera aos recém-casados. Tio Heitor resmungou um palavrão. Dirigiu-se a ele:


“Tenha santa paciência! Você dorme com a minha sobrinha na mesma cama e não consegue despertar nela o menor desejo? Que tipo de homem é você?”


Quase botou-lhe pra fora, aos pescoções. No fundo, não queria mais nem ouvir falar daquela sobrinha. A partir do momento em que disseram “sim” no altar, aquele pepino deixara de lhe pertencer. Tia Cacilda, sempre mais sensível aos problemas dos outros, foi ter com ele à porta:


“Calma, Carlos. Minha sobrinha é diferente das outras moças, você bem sabe. Trabalha com ela no abrigo, deveria saber já disso...”


Ele a interrompeu, surpreendido:


“Trabalho com ela no abrigo? Quem lhe disse isso? Jamais estive nesse tal abrigo. Conheci Butterfly na rua, quando despencou do céu um aguaceiro e eu corri a acudi-la com meu guarda-chuva.”


Só então Tia Cacilda deu-se conta: conheciam muito pouco aquele rapaz, e a pequena mentira contada por Butterfly sobre a origem da relação dos dois não lhe cheirava bem. O que a garota poderia esconder? Tia Cacilda finalizou a conversa dizendo que tudo ia se resolver e voltou para o interior da casa, com o rosto muito grave, pensando numa série de possibilidades.

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Irritado com a infrutífera conversa que tivera na casa da família da esposa, Carlos esperou que ela se recolhesse. Como todas as noites, no escuro, ela despiu-se e vestiu a camisola. Deitou-se. E então aconteceu: Carlos a agarrou, arrancou suas roupas e as dela. Aquele rapaz, sempre tão cortês, doce, transfigurava-se no monstro. Ela quis gritar, uma mão sufocou sua boca. Em seguida, empurrou sua cabeça em direção ao baixo-ventre, obrigando-a a iniciar a felação. Uma péssima idéia. Butterfly, bicho feroz, mordeu-lhe o pau. Ele soltou um grito lancinante, sua visão ficou turva. Ela aproveitou para correr e trancar-se no banheiro. Lá ficou a noite toda. O incidente demoveu Carlos de futuras tentativas. Com o caralho inchado e dolorido, passava os dias parado na repartição em que trabalhava, o olhar perdido, a mente longe. Amava Butterfly com todas as suas forças, mas agora tinha certeza de que a recíproca não era verdadeira. Tinha para si, agora, que fora usado para fins escusos, para ludibriar a família, a sociedade, o diabo. Resolveu ir ao abrigo comunicar à esposa que não toleraria aquela situação.

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Era tarde quando chegou ao lar dos desvalidos. Todos os funcionários haviam partido. Porém, ele tinha uma cópia das chaves, que mandou fazer à revelia de Butterfly e que um dia poderiam ser úteis. Foi abrindo as portas que davam acesso à ala dos internos. Ouviu, do corredor, gemidos. Imaginou que um casal de mendigos estivesse fornicando, embora as alas dos internos fossem separadas por sexo. Curioso, dirigiu-se para o lado onde ouvia as vozes e estacou, petrificado. Reconheceu a voz de um dos gemidos. Por um instinto mórbido, quis se certificar. E viu, pela janelinha da “cela”, deitados na cama, Butterfly e um homem. Devia ter mais de sessenta anos. Tinha os cabelos desgrenhados, barba grande, o corpo de uma coloração bege-escura. Carlos colou o rosto naquela passagem e viu, nítido, o grosso cacete ensebado e cheio de marcas do ex-morador de rua invadindo a delicada vulva de sua mulher. Ficou sem ar, caiu de joelhos, ofegando.


Em casa, na companhia da mulher que agora sabia adúltera, ficou taciturno. Não dirigiu-lhe palavra. Dormiam em quartos separados desde a tentativa de castração. Vez por outra, durante o jantar dessa noite, fitava-a com ódio. Ela captou sua fúria, mas não tinha coragem de lhe dizer nada.


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No dia seguinte, pediu a um amigo de confiança que lhe indicasse um detetive. Queria saber tudo o que a mulher fazia: onde recolhia os mendigos, se mantinha relações com eles apenas no abrigo, se tinha outros amantes na rua. O detetive, daqueles de estórias em quadrinhos (só faltavam-lhe a lupa e o cachimbo), tinha seu marketing mais forte justamente no esteriótipo. Apareceu duas semanas depois com os resultados. Disse ao contratante:


“Amigo, eu já vi de tudo nessa vida, nessa minha profissão. Mas sua mulher me deixou besta. Já diria o profeta: o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão. Acho que o apocalipse está chegando aí, pra transformar as putas em santas e as santas em putas”.


Estendeu-lhe um envelope com fotos.


“Deposita o restante na minha conta. E, precisando de algo mais, pode me procurar”, frisou o investigador, antes de apertar-lhe a mão e sair.


Sozinho na repartição, ele tinha medo de abrir o envelope. Seu coração ia à boca. Afinal tomou coragem, quase rasgou o invólucro, alucinado, febril. As imagens, num turbilhão, invadiram seus olhos com matizes de pesadelo. Eram fotos de sua mulher, sua linda, pálida e pequena mulher, com os tipos mais esdrúxulos. Mendigos da mais decadente precariedade. Um mecânico negro, caolho, sujo de graxa. Um tipo esquálido, com cara de retirante, avental de uma peixaria. Um perneta. Um jovem com síndrome de down. Um anão. As primeiras fotos eram flagras dela passeando publicamente com os sujeitos, entrando ou saindo de edifícios. As últimas, que o detetive astutamente deixou para o final naquela seqüência, como se fora um álbum de terror, eram provas cabais: sabe-se lá como, fotografou Butterfly no coito com alguns dos amantes.


Ele ficou um tempo paralisado, o olhar perdido no nada. Então voltou a si. Tirou da gaveta o revólver. Da rua, ouviu-se o estampido.

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Ao saber do ocorrido, Butterfly correu ao hospital. Os tios a olharam com nojo: tio Heitor tinha no bolso o envelope com as fotos, encontrado sobre a mesa do suicida. Ela se dirigiu ao quarto, na porta encontrou um médico, que lhe explicou:


“A bala atravessou-lhe a têmpora. Não morreu por milagre. Mas... nunca mais será o mesmo. Lamento”.


Invadiu o quarto. Chorou diante do infeliz marido. Ficou ao lado dele durante todo o período em que ficou em coma. Muitas semanas depois, levou-o para casa, numa cadeira de rodas. Estava em estado vegetativo, babava. Ela lhe dava banho, lhe dava de comer, limpava seus excrementos, com um lenço ia recolhendo a saliva que lhe escorria pelos cantos da boca. Enfim o amava.


Por Rafa Gimenez.