quinta-feira, 3 de março de 2011

Iracema

“Iracema, meu grande amor foi você.”, Adoniran Barbosa.


Ardia em febre. Seus sonhos eram alucinações e acordava banhado em suor. Lembrou-se do irmão mais velho lhe ensinando o macete: “Primeiro você cospe nos dedos e enfia no buraquinho. Ela nem berra. Depois, quando tiver duro o negócio, você enfia bem devagarinho. Deixa um pouquinho lá dentro e tira de novo. Dá uma cuspida no pau e enfia traveiz. Aí o negócio vai de jeito”. Ele teve um pouco de nojo na primeira vez. O ânus de sua parceira era quente, úmido, meio melado. O cheiro era muito ruim. Depois de gozar, saiu correndo desabaladamente em direção ao matagal e durante dias não saiu pra brincar fora da casa. Sentia-se humilhado na presença dos colegas, na escola. Era como se todos soubessem. O mais velho da turma, Galego, já comia mulheres de verdade. Pelo menos era o que dizia. Sentia-se sufocado, precisava compartilhar com alguém aquela dor que o desconsolava. Galego comia a sopa rala da merenda, isolado num canto do pátio, na cabeceira da longa mesa. Numa atitude ousada, veio sentar-se perto dele.


“Galego, posso sentar aqui?”


“Se for pra me aporrinhar, não.”


Não sabia o que dizer. Ficou soprando a sopa enquanto o outro comia.


“Como é que é com mulher de verdade?”


“Quê?”


“O sexo. Como é? É bom?”


O outro o encarou, surpreso.


“Depende.”

“Depende de quê?”


“Depende da mulher e da nossa vontade. Por que você quer saber, seu merdinha?”


Olhou Galego novamente sem saber o que dizer. Sabia onde queria chegar, mas não sabia o caminho. Resolveu falar duma vez:


“Você já transou bicho?”


Espanto maior do outro. Este sorriu interiormente.


“Não. É bom?”


“Não sei. É diferente...”


“Conta aí. Como é?”


Sentiu um alívio. Galego lhe pedia, interessado, para dividir a experiência. A cadeia tinha sido invertida. Narrou com pormenores seu coito com Iracema, a cabra. Conforme contava, sentia como se aquilo de repente se tornasse um feito digno. Molestara o animal com sua virilidade nascente, tivera coragem para aquilo. Valentia que nem o temido Galego teria. Contraiu os lábios ao falar do gozo, forçou as expressões para se passar por um legítimo malandro. Eram iguais, Galego e ele. Homens. Quando terminou, Galego lhe disse:


“Amanhã vou lá. Quero ver como é”.


O baque lhe pegou de surpresa. Não esperava que alguém quisesse ver. Foi tomado de pânico súbito. Saiu correndo do pátio, escondeu-se no banheiro. Lá ficou até o momento de ir embora. Em casa, apresentou-se taciturno. Depois de terminada a refeição, pediu permissão pra brincar no curral.


“Vá, meu filho. Mas não se suje”.


Aproximou-se de Iracema, que calmamente cheirava um arbusto. Sentiu uma febre que lhe devorava as entranhas e seu primeiro impulso foi o de correr de volta à casa. Lembrou-se, porém, de ter impressionado Galego com seu relato da tarde. Pensou na sensação quente e protetora que vinha do cu da bichinha. Olhou para os lados, puxou Iracema para detrás do celeiro. Gozou mais rápido do que da primeira vez, com um pregador de roupa lhe tapando as narinas. Limpou-se numa peça de roupa do varal, voltou para o quarto e ficou lendo “Memórias de um sargento de milícias”, que a professora tinha dado.


***


O irmão lhe advertiu:


“Você não pode ir todo dia. Pai vai perceber”.


Olhou-o com um esgar de choro:


“Eu parei com essa nojeira”.


“Parou uma porra! Pensa que não sei que todo dia que você some à tarde, você vai lá pro fundão do sítio? Pai um dia vai ver o cu da cabra alargado e vai dar em nós! Se eu entrar por sua causa, eu arrebento você”.


O menor se enfureceu.


“Arrebenta? Pois se você me ensinou essa porra! Eu tava muito bem de punhetinha! Essa putaria é invenção sua!”


“Invenção minha e que mal não faz. Mas tem que saber a hora de fazer, sua mula”.


Calaram-se ao ver o pai se aproximando. Este achegou-se, fez um cafuné no menor.


“Tá cabreirinho? Que foi?”


“Nada não pai, bença”, e saiu correndo.


“O que tem seu irmão?”


“Sei não, pai. Esse bicho aí é muito arredio demais.”


“Seu irmão anda estranho. Mas vou descobrir o que é”, disse o velho, coçando o queixo.

***



Comia o macarrão-parafuso com uma colher mal lavada quando sentiu a presença de alguém a seu lado. Era Galego.


“E então, garanhão? Quero ver aquela cabra lá!”


“...”


“Como é? Veio me contar o negócio só pra me deixar na vontade? Me leva lá hoje.”


“Vá à merda”.


Ficou surpreso da própria coragem. O outro mudou de expressão, parecia que o mundo havia parado de girar até que se desenrolasse o conflito. Mas Galego riu:


“Tá brabo, comedor de cu de cabra?”, e completou: “Ou tu me leva, ou conto pra todo mundo que o Guri tá com o pau todo encravado de merda de animal”.


O medo lhe fez aceder.


“Tá certo. Hoje nós vai lá. Mas ninguém pode saber.”


“Segredo de amigo meu eu guardo como se fosse meu”.


Ser chamado de amigo lhe deu um certo orgulho. Galego não tinha amigos. E ele, também não. Mas quem era amigo de Galego não precisava de amigo nenhum. Não precisava nem de Deus.


***


Amarraram Iracema numa corda e foram levando-a. As sucessivas curras tornaram o animal um pouco arredio. Guri, ao não se sentir correspondido, via aumentar sua paixão a cada dia. Agora, tinha ciúmes. Mas não sabia dizer se de Iracema ou de Galego, que olhava a bichinha fixamente, com intensa curiosidade. Chegaram ao fundão. Galego apenas disse:


“Como é que faz?”


“Você pega ela assim e...”

“Não, vai você primeiro que eu vou depois”.

Abaixou as calças e viu seu pênis diminuto completamente mole. Já estava com vergonha do outro.


“Não consigo. Na sua frente não dá”.


“Ah, finge que eu nem tô aqui”.


Cuspiu na mão, começou a se masturbar. E nada. Aquilo ia durando um bom quarto de hora e Galego assistia, divertido. De repente, aproximou-se. Abriu o cinto, baixou a calça jeans. Guri ia resmungar que ele tinha dito que ia depois, até que se sentiu dominado. Galego passou-lhe uma rasteira que o jogou ao chão, virou-o de costas para ele. Desesperado, ele percebeu que não teria forças para reagir. Galego ia introduzindo-se quando ouviram um tiro ao longe. Foi o tempo de correr e enfiar-se no mato, deixando as calças para trás. O pai chegou instantes depois, enfurecido.


“Que viadagem é essa aqui?”


“Pai, eu... Pai...”


As palavras lhe engasgavam, um turbilhão de sílabas querendo sair por uma boca só. Sentiu fraqueza nas pernas. A imagem do pai, espingarda na mão, nublou-se e sua voz parecia vir de léguas além de distância. Quando tudo de apagou, ele teve um segundo para sentir alívio.
Quando acordou, o pai lhe contou das providências práticas. Havia chamado um médico, para ver o que ele tinha. E vendido a cabra. Ele teve vontade de gritar, de chorar, de encolher-se até sumir. Mas não fez nada. Prostrou-se numa tristeza e solidão tão absolutas que durante várias semanas a casa adquiriu ares de velório.


***


Agora era aquele pesadelo dentro do pesadelo, Galego tirando o pinto pra fora e ora enrabando Iracema, ora correndo atrás dele. Quando acordava, dizia coisas ininteligíveis. O médico chamou os pais, disse baixinho:


“Essa febre já dura três dias. Não é tuberculose. Juro que nunca vi uma coisa parecida com isso.”


“O menino tava tão bem... Ficou assim de repente!”, lamentou-se a mãe.


O pai pouco falava, mas carregava uma expressão devastada. Ouviram Guri dizer, em meio a um pesadelo:


“Iracema... Iracema...”

Somente lá pela quarta semana ele começou a melhorar. A febre ia baixando e já se dizia que estava fora de perigo. Mas nunca mais foi o mesmo. Deixou de ir à escola, ficou trabalhando na roça. Sua alegria se quebrara. Quando estavam no mesmo recinto, evitavam os diálogos ele e o pai. Não se sabia se por vergonha mútua ou se por ódio. Nunca se saberia, também, se Guri perdoara o pai por ter sumido com Iracema. Ou se lhe devia o favor de um grande alívio.
O certo é que depois viria a se casar, amar, ser feliz. Mas de algumas coisas nunca se esqueceu. Sobretudo de que o primeiro amor é forte e viscoso.



Rafael Gimenez.




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